Que história aguarda, lá em baixo, seu fim?
Uma confissão e uma maldição
Todos os livros que li desde meu aniversário de vinte e quatro anos não têm final. Anos se passaram desde então e comecei dezenas de livros, mas fui incapaz de terminá-los. Alguns parei nas primeiras páginas. Outros, li até quase o derradeiro capítulo antes da maldição se manifestar. Mas invariavelmente não consigo mais chegar na última página.
Conto isso por três motivos:
O primeiro é uma exoneração de responsabilidade. São anos sem conseguir terminar um livro e você está prestes a ler meu boletim matinal. Ou, na pior das hipóteses, assinou sem ler os termos. Minha escrita está ainda mais enferrujada que minha leitura, afinal a graduação em História tirou meu prazer em escrever por esporte durante anos. Mas não mais. Por isso criei esse diário, como uma forma de exercitar músculos que estão parados desde que dei um ghosting no meu orientador de mestrado. Meu jornalzinho não tem editor, e se a qualidade for duvidosa você recebeu meu aviso. Contudo, os artigos vão melhorando com o tempo, te garanto, afinal este é o objetivo com o qual voltei a escrever.
Agora que você sabe os termos em que estamos, o segundo motivo que eu te conto isso é um desabafo. Não ser capaz de terminar um livro é horrível, sinto-me o leitor de Ítalo Calvino que agoniadamente tenta encontrar o final de Se um viajante numa noite de inverno, apenas que no lugar de uma conspiração paira sobre mim uma maldição. Então queria compartilhar essa história com você. Não espero nenhum conselho, honestamente, mas é que o ato de escrever me obriga a colocar as ideias no lugar, nem que esse lugar seja o papel. Mas mais do que isso, uma das sequelas da graduação em História é que você se torna incapaz de escrever um e-mail que seja sem pensar em estruturas para suas ideias dispersas; uma propriedade terapêutica que sinto falta na terapia. Quem sabe assim eu consigo lidar com o luto de ter perdido o final de todos meus livros futuros.
E o terceiro motivo, com poucas esperanças, é um exorcismo. Talvez o ato de transformar em palavras a maldição posta sobre mim pelo fantasma de Virgínia Woolf torne-a apenas isso: palavras. Uma ficção, uma mentira. E assim na próxima vez que eu pegar um livro o final dele estará lá, no alcance das minhas mãos.
Eu havia acabado de ter meu ano de leituras mais frutífero quando Virgínia me amaldiçoou. Estava lendo um livro dela sobre uma aristocrata inglesa e sua metanoia no entreguerras. As reflexões de Clarisse ainda habitam minha mente. Espero que ela tenha sido feliz, espero que a festa dela tenha dado certo. Eu não sei a resposta para essas perguntas porque no meu aniversário de vinte e quatro anos recebi a notícia da quarentena. Não consegui continuar a ler, me afundei no trabalho, me afundei na depressão, isolei meus amigos, me isolei de meus livros. Os piores meses da minha vida passaram como anos.
Não foi até o ano seguinte, em um estado mental ligeiramente melhor, que tentei ler um livro novamente. A Fúria, de Silvina Ocampo, compila histórias ácidas e penetrantes. Um animal selvagem em forma de livro. E era exatamente o que eu precisava para retomar a leitura: contos. Não digo isso apenas pela superioridade do conto ao romance, mas também porque em meu estado deplorável eu precisava de histórias mais curtas, como um comprimido partido para facilitar a ingestão e que, ao mesmo tempo, me fizessem sentir algo em meio ao vazio que estava vivendo. Nem que este algo fosse a mordida de um lobo.
Não adiantou, antes da metade a maldição se manifestou pela primeira vez. O livro sumiu da minha mente, e na metade de um conto nunca mais voltei a lê-lo.
Tentei novamente com outros contistas argentinos, Mariana Enriques e Jorge Luiz Borges. Tentei romances, livros acadêmicos, graphic novels, manuais de controle remoto e textos sagrados. Tentei com meu livro favorito, com meu autor favorito, tentei com um livro que já tinha lido quando criança. Tentei com dezenas de livros, tentei dezenas de invocações e exorcismos, o mais recente Apocalypse Baby de Depentes.
Meu estado era deplorável, e no terceiro aniversário que passei sem conseguir finalizar um livro tomei a decisão mais racional possível e comecei a terapia. Um semestre se passou desde então e sinto que consegui sair parcialmente do estado depressivo que me encontrava. Lembrarei para sempre da sensação mágica de sentir empolgação com algo pela primeira vez em mais de dois anos. A terapia também me ajudou a identificar um déficit de atenção do qual venho desenvolvendo ferramentas para lidar. Foi a decisão mais acertada que já tomei (eu lembro de todas porque não foram muitas). Ainda assim ainda não consigo terminar nenhum livro.
Me restam apenas duas alternativas. A primeira executo agora, na forma desta carta, deste desabafo, deste exorcismo. Quando finalizado, espero conseguir voltar para minha vida como era antes.
A segunda veio a mim por meio de um sonho. Algo que não percebi em minha primeira leitura é que Mrs. Dollaway é uma história sobre um mundo não apenas pós-guerra, mas pós-pandêmico. A história de uma mulher de meia-idade que sofreu das sequelas da gripe espanhola e decidiu, dado dia, sair de casa e ir comprar flores sozinha. Talvez eu consiga terminar de ler o livro agora que essa informação não escapará como da primeira vez. Talvez eu consiga comprar as flores sozinha.
Caralho, que texto forte... terminei toda arrepiada